Em uma madrugada de junho de 2003, Stephenie Meyer, uma dona de casa mórmon da pequena cidade de Cave Creek, no Arizona, acordou de sonhos intranquilos. Não, ela não estava prestes a se transformar em um inseto gigante, mas sim na mais nova pop star da indústria de best-seller. No dia seguinte, a partir das imagens “muito vívidas” que guardou na memória, elaborou uma frase, digamos, enigmática, que lançaria as bases do fenômeno editorial Crepúsculo: “Na luz do sol ele era chocante”. Uau! O resto da história, todo mundo conhece: os quatro livros sobre colegiais no cio e vampiros sexualmente reprimidos venderam como batom entre as adolescentes de coração mole, gerando mais de 25 milhões de cópias mundo afora e uma franquia bem-sucedida de blockbusters hollywoodianos.
A ascensão meteórica de Stephenie Meyer, que não havia publicado nenhum livro antes da bem-sucedida estreia, deixou muita gente surpresa. Ainda hoje, é difícil entender de onde uma dona de casa à beira dos 30, vivendo o dia a dia banal de uma cidadezinha da América Profunda, teria tirado a inspiração para escrever histórias fantasiosas sobre vampiros. Mas para o biógrafo americano Marc Shapiro, que esmiuçou sua trajetória em Stephenie Meyer – A biografia não autorizada da criadora da saga Crepúsculo , que acaba de ser lançado no Brasil, não há nada de improvável no sucesso da autora.
Prazer reprimido é melhor do que sexo
O leitor já começa a pensar: “Lá vamos nós, mais uma crítica ácida à literatura enlatada das grandes editoras…”. Dessa vez, no entanto, não é bem assim. Por mais tentador seja atacar os grandes fenômenos editoriais e suas incansáveis campanhas de marketing, é preciso reconhecer pelo menos um aspecto positivo na histeria Crepúsculo, que tomou de assalto as nossas adolescentes apaixonadas.
Em primeiro lugar, a bizarra saga se formou contra uma certa tendência comportamental. Visando estrategicamente um alvo específico (as garotas e seus primeiros anseios afetivos e carnais), é verdade, mas ainda assim em oposição à tendência liberal dominante na indústria cultural de hoje. Vide a recente produção infanto-juvenil, tomada por narrativas que pretendem falar abertamente sobre sexualidade e outros temas tabus – sempre em uma linguagem didática, edulcorada, falsamente descolada… Tudo muito bacana e politicamente correto, OK, mas ao mesmo tempo muito chato. Por sua vez, a mídia faz um apelo bombástico às púberes e inseguras excitações juvenis, expondo e promovendo por todos os lados corpos esculturais, cópulas perfeitas, de onde irradia um vazio e mecânico “go for it”.
Tanto na sua versão cinematográfica quanto literária, os vampiros puritanos de Stephenie Meyer correm na direção contrária. Baseados nos valores firmes de uma religião controversa, retardam a tão aguardada passagem à ação. Não sem sofrimento, aceitam interrupções anticlimáticas que, no fim, apenas prolongam o perigo prazeroso do sexo – para eles, uma energia quase sagrada. Surgem intermináveis negociações entre os corpos (o “eu quero, mas não posso” ou, mais grosseiramente, “dou ou não dou?”), que remetem a um tempo pré-educação sexual, quando o ato físico ainda possuía sua cota de mistério e transcendência. Afinal, como dizia Nelson Rodrigues: “Antigamente, a lua-de-mel era um banho de sangue”.
Na vida real, a abstinência pode ser um tédio. Mas, pelo menos no que diz respeito à literatura, parece uma opção muito mais interessante do que todos os romances metidos a moderninhos e suas vãs tentativas de desmistificar nossas pulsões vitais
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